TRT-8 promove formação em atendimento e reconhecimento de casos de escravidão contemporânea

O curso ocorreu em parceria com a Clínica de Combate ao Trabalho Escravo da UFPA.
Foto colorida dos advogados e pesquisadores João Daniel Resque e Prudêncio Neto, da Clinica de Combate ao Trabalho Escravo
#ParaTodosVerem Foto colorida dos advogados e pesquisadores João Daniel Resque e Prudêncio Neto, da Clinica de Combate ao Trabalho Escravo, de pé, no auditório da Ecaiss. Ao fundo, tela exibe slade sobre o tema escravidão contemporânea.
Audiodescrição da imagem: 

O TRT-8 promoveu um curso de formação em atendimento e reconhecimento de casos de escravidão contemporânea para seus servidores, ministrado pelos advogados e pesquisadores João Daniel Resque, Prudêncio Neto, Valena Jacob e Camila Lourinho, nos dias 27 e 28 de agosto, no auditório da Escola de Servidores (ECAISS), no prédio-sede, em Belém. O objetivo é o aperfeiçoamento no atendimento e em técnicas processuais nos casos de escravidão contemporânea que venham a ser atendidos no âmbito dos estados do Pará e do Amapá, em conformidade com o Acordo de Cooperação Técnica entre a Clínica de Combate ao Trabalho Escravo (CCTE/UFPA) e o TRT-8.

O Dr. Prudêncio Neto começou explicando aos (as) servidores (as) do TRT-8 as diferenças entre a escravidão contemporânea e colonial, que as pessoas se acostumaram a ver nos livros de História. “Hoje ela [escravidão] é caracterizada por ser cada vez mais sutil, mais difícil de identificar. Eles [escravistas] sempre tentam fugir daquilo que está mais em evidência para tentar manter a escravidão desses trabalhadores”. 

Se antigamente era muito comum ter o cerceamento da liberdade ou prender esse trabalhador por meio de vigilância, ou mesmo em razão de dívidas, hoje em dia é mais comum a privação de direitos básicos que os (as) trabalhadores (as) deveriam ter no exercício das suas funções. “Hoje é muito mais frequente a gente encontrar casos de jornada exaustiva e trabalho degradante: quando falta água potável, as instalações sanitárias são inadequadas ou inexistentes, as habitações são muito precárias e expõe o trabalhador a toda sorte de intempérie climática, de insetos, de animais. Eles [escravistas] dão umas nuances para fugir das fiscalizações. A questão hoje nem é tanto a liberdade do trabalhador, mas a dignidade dele enquanto pessoa”, exemplifica Prudêncio Neto.

Urbano X Rural

E a escravidão no meio urbano têm suas próprias características. “No meio urbano, a gente vai encontrar muitos casos na costura, na cadeia da moda, que são ambientes completamente hostis. Você encontra muitas trabalhadoras compartilhando o mesmo espaço, tudo muito precário, às vezes, tendo que levar criança. Também há muitos casos de trabalhadoras domésticas, que é um ambiente ainda muito complicado para fiscalizar porque só é acessível por alguma denúncia e muitas vezes essas trabalhadoras nem saem de casa. Encontramos casos de trabalhadoras escravizadas há 50 anos e coisas do tipo. E ainda há muitos casos na área da construção civil, por falta de equipamento de proteção, exposição a riscos ambientais”, aponta Prudêncio Neto.

No Pará, os pesquisadores da Clínica têm encontrado grandes focos de trabalho escravo nas regiões de Marabá - São Félix do Xingu, Itupiranga - e também em Altamira. “A escravidão é bastante difundida no estado. Já tivemos um caso na Clínica também da região de Santarém. Mas reconhecemos que esse é um problema que afeta todo o estado e que só não é mais visto porque a fiscalização não tem força para atuar de uma maneira mais incisiva. Inclusive, os fiscais estão de greve, então estão suspensas as fiscalizações. O que tem de denúncia, a gente recebe atualmente por meio do MPT (Ministério Público do Trabalho)”, destaca Prudêncio Neto.

Reincidência

A escravidão é possível por elementos inter-relacionados não só ao trabalho mas aos aspectos da vida do sujeito, inclusive por questões raciais. “Mais de 70% dos trabalhadores que são resgatados [da escravidão contemporânea] são pretos ou pardos. Normalmente são muito pobres. E por essa ‘precisão’ de trabalho para sustentar a família, comprar remédios, enfim, para tornar a vida minimamente possível, tem que se submeter a vários tipos de trabalho e às vezes acabam sendo cooptados para a escravidão”, aponta Prudêncio Neto.

É um fenômeno também educacional porque a maioria dos (as) trabalhadores (as) resgatados (as) chegou apenas às séries iniciais do ensino fundamental, realizado também em péssimas condições, o que faz deles analfabetos funcionais. “Isso a gente encontra muito, entre muitos outros fatores que acabam sujeitando essas pessoas ao trabalho escravo. A ‘precisão’ continua [após o resgate] e o suporte estatal é muito pequeno. Eles têm acesso àqueles três meses de seguro-desemprego, mas não tem nada que possa capacitá-lo, formá-lo em algum outro ofício que o ajude a fugir desse ciclo, então ele acaba voltando à escravidão”, explica.

Atermação no TRT-8

Diante deste cenário, os membros da Clínica de Combate ao Trabalho Escravo (CCTE/UFPA) destacaram como o setor da atermação do TRT-8 - responsável por atender aos (as) trabalhadores (as) e realizar a abertura de processo trabalhista - pode identificar que aquele trabalhador é vítima de escravidão. “Nós trabalhamos com os servidores do TRT-8 uma série de indicadores que demonstram que há trabalho escravo. É importante que eles compreendam isso para que, ao receberem um caso, eles possam discernir: ‘esse aqui tem fortes indícios de trabalho escravo’. E em seguida faz a reclamação [trabalhista]”.

Foi ressaltado ainda que este é um tipo de reclamação muito difícil que o trabalhador faça sozinho. “Por isso é importante que tenha denúncia aos órgãos competentes, como Ministério Público do Trabalho, Ministério Público Federal, até mesmo para a Clínica de Combate ao Trabalho Escravo da UFPa, para que a gente possa dar suporte a esse trabalhador em relação aos meios de prova e o acompanhamento do processo todo”. 

Prudêncio Neto explica que o trabalhador vítima de trabalho escravo, muitas vezes, não leva nem telefone para o ambiente de trabalho, então não tem como fazer uma foto, um vídeo ou qualquer outro registro daquele ambiente em que vive, da forma como trabalha. “É muito importante olhar de maneira mais integrada para esse trabalhador para que ele consiga obter os meios de prova dele e para que o próprio Judiciário consiga fazer o trabalho dele. Até porque uma característica marcante desses casos é que depois do registro, muitas vezes o trabalhador desaparece, eles trocam muito de telefone, de cidade, ficam em locais isolados. A gente, na Clínica, por exemplo, tem um trabalho enorme de acompanhamento, temos vários contatos de familiares, vizinhos, pessoas próximas para conseguir acessá-los para ajudá-los a ter acesso aos seus direitos”.

O profissional destaca que os indicadores de trabalho escravo estão presentes na Instrução Normativa MTP nº 02/2021. Entre eles estão as condições degradantes, a jornada exaustiva e a privação de liberdade para ir e vir. “Ali, os servidores do TRT-8 têm acesso a vários itens que podem ajudá-los a elaborar perguntas para esse trabalhador. Entre esses itens, por exemplo, a gente encontra habitação inadequada, armazenamento de alimentos em potes de agrotóxicos, sanitários inadequados, jornada de trabalho exaustiva, então é um instrumento mesmo de consulta - inclusive para os magistrados”, ressalta Prudêncio Neto.

O servidor Sandro Lopes, que atua no atendimento aos (as) trabalhadores (as) e realiza atermações, inclusive durante as itinerâncias do TRT-8 pelos interiores do Pará e do Amapá, destacou a importância do curso e suas instruções. “Assim, a gente consegue então identificar essa questão no trabalho escravo contemporâneo, porque tem uma nova perspectiva, um novo olhar em relação a como é que se identifica. Percebi que já me deparei, só que na época eu não tinha essa visão de que poderia ser trabalho escravo, eu estava apenas ligado na questão pecuniária do direito do trabalhador, não tinha esse olhar que podia ser uma possível situação de trabalho escravo”, lamentou. 

Ele conta uma situação específica, de um trabalhador de uma cooperativa de castanha. “O trabalho era bastante exaustivo e não tinha carteira assinada. Naquele momento, não me deu a ideia de perguntar como era o ambiente de trabalho, não perguntei sobre outras coisas que podiam ter evidenciado isso, me limitei apenas à questão trabalhista e ali poderia ser uma situação de trabalho escravo. Espero agora usar esse conhecimento, poder identificar, não só na questão rural, mas também no trabalho escravo urbano”, destacou o servidor do TRT-8.

Texto: Lais Azevedo/Secom TRT-8 Foto: Erica Alves/Estagiária da Secom TRT-8