Casos de discriminação por sexualidade e gênero no trabalho são julgados no TRT-8

Os processos foram apreciados levando em consideração as diretrizes do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero.
A reportagem traz duas fotografias: uma da desembargadora Suzy Koury e outra do juiz Otávio Bruno.
Desembargadora Suzy Koury em sessão plenária no TRT-8 — Foto: ASCOM8
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No Mês da Mulher, em alusão ao 8 de Março, o Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Região (TRT-8) destaca a importância de se observar o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, instituído pelo Conselho Nacional de Justiça (Portaria CNJ n. 27, de 2.2.2021), aplicado em dois julgamentos recentes deste Regional. O primeiro, um processo que abordava a discriminação por razões de sexualidade, praticado pelo chefe em relação à sua colaboradora; e o segundo, sobre violência de gênero, praticado por um operário contra sua supervisora; ambos ocorridos no ambiente de trabalho das vítimas.

A primeira trabalhadora entrou com processo contra a Redecard, pedindo o reconhecimento como financiária, por trabalhar com atividades relacionadas a cartão de crédito, para assim receber os benefícios relacionados à categoria. Reconhecida sua condição como financiária, ficou garantido à trabalhadora direitos como a jornada legal de seis horas, condenando-se a empresa ao pagamento de horas extras, com reflexos em férias, 13º salário e FGTS. Assim como se fez jus ao pagamento das verbas previstas nas normas coletivas dos financiários, como auxílio-refeição e participação nos lucros e resultados.

Mas além das típicas questões trabalhistas, ela também entrou com recurso no TRT-8 referente a um pedido de indenização por dano moral decorrente de assédio moral, violência institucional e discriminação por sexualidade. Em seu depoimento, a trabalhadora declarou que sofria constante assédio moral por parte de seu gestor, passando por situações humilhantes e constrangedoras diante de outras pessoas. E que as cobranças com relação às metas e resultados eram feitas sempre a comparando e menosprezando em relação aos demais colegas, inclusive de outros postos de trabalho.

A trabalhadora ressaltou que também teria sido vítima de comentários homofóbicos, sendo que, em certa ocasião, em uma reunião junto de todos os funcionários, seu gestor fez declarações homofóbicas em razão da orientação sexual de seus funcionários, alegando que era contra o casamento gay e que “não era coisa que ele aceitaria”. A situação, segundo ela, gerou desconforto e constrangimento, pois todos eram cientes de que ela tem uma companheira e as declarações se dirigiam a ela, ainda que seu nome não fosse citado. Em seguida, o que foi relatado pela vítima também foi confirmado pelo depoimento de uma colega de trabalho.

A relatora do processo, a desembargadora Suzy Elizabeth Cavalcante Koury, que integra a 1ª Turma do TRT-8, apontou que a evidente exposição da trabalhadora a um ambiente de trabalho marcado por intensa pressão, parâmetros de produção inalcançáveis, cobranças severas e tratamento discriminatório por parte do seu gestor “configura conduta que fere diretamente o princípio da dignidade da pessoa humana, sendo passível de indenização por danos morais”. Assim, restou determinado o pagamento de indenização de aproximadamente R$150 mil à trabalhadora.

O outro caso destacado no âmbito da Justiça do Trabalho da 8ª Região foi a manutenção da demissão por justa causa de um empregado que praticou violência de gênero no canteiro de obras da empresa Horizonte Minerais, área de extração de minério/garimpo, sendo a vítima a engenheira civil supervisora de produção. Durante manifestação de funcionários reivindicando o pagamento de hora extra, com paralisação dos ônibus, houve agressão verbal pronunciada por um dos manifestantes para a engenheira. Além disso, em audiência, ele afirmou ter se negado a conversar com a engenheira por ela estar muito “agridenta”.

Uma das testemunhas do processo, um colega de trabalho da vítima, relatou que o funcionário estava alterado e foi grosseiro e machista com a engenheira, afirmando que não conversaria com ela, “somente falaria com os homens”. Diante deste contexto, o juiz do Trabalho Otávio Bruno da Silva Ferreira, titular da Vara do Trabalho de Redenção, no Pará, considerou que, assim como ocorreu no caso de relatoria da desembargadora Suzy Koury, este também deveria ser analisado a partir do julgamento com perspectiva de gênero, “sob pena de negar a ocorrência de agressões estruturais que podem passar despercebidas se adotado outro método de interpretação e julgamento”, apontou.

Perspectiva de gênero

Ambos os magistrados optaram por se basear no Protocolo do CNJ, criado para colaborar com a implementação das políticas nacionais relativas ao enfrentamento à violência contra as mulheres pelo poder judiciário e ao incentivo à participação feminina no poder judiciário. Ele traz um guia para que os julgamentos que ocorrem nos diversos âmbitos da Justiça possam observar o direito à igualdade e à não discriminação. 

Há no Protocolo um capítulo dedicado exclusivamente à Justiça do Trabalho, abordando questões fundamentais, como a desigualdade de oportunidades no ingresso e progressão de carreira, as desigualdades salariais, a discriminação na seleção de candidatos às vagas de trabalho, o assédio moral e sexual no ambiente de trabalho, a inadequação de medidas de segurança e medicina do trabalho, que seguem ainda o padrão do “homem médio”, além de questões específicas das trabalhadores gestantes e lactantes.

O Protocolo também lembra que na Convenção 190, ainda pendente de ratificação pelo Estado brasileiro, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) reconhece que a violência e o assédio baseados em gênero no mundo do trabalho afetam mais as mulheres e as meninas, o que requer uma abordagem inclusiva, integrada e com perspectiva de gênero, que enfrente questões como os estereótipos, além das várias formas de discriminação e desigualdade nas relações de poder devido ao gênero.

“Em termos econômicos, a violência e o assédio de gênero constituem um obstáculo à integração e à permanência das mulheres na força de trabalho. Dessa maneira, debilitam a capacidade de obtenção de rendimentos a longo prazo das trabalhadoras e contribuem para a disparidade salarial de gênero, especialmente quando se trata de salário variável, pois a recusa de tolerar o assédio sexual praticado por superiores hierárquicos ou por clientes pode colocar em risco a capacidade de a trabalhadora obter o volume de comissões ou gorjetas necessário para o seu sustento e de sua família. O empobrecimento da vítima de violência sexual no trabalho pode se dar também com sua saída da empresa: uma em cada seis mulheres assediadas pede demissão”, destaca o Protocolo do CNJ.

De acordo com o juiz Otávio Bruno, o Protocolo criado pelo CNJ atende a necessidade, em casos como que era julgado por ele, de interpretar o direito de maneira não abstrata, atenta à realidade, buscando identificar e desmantelar desigualdades estruturais. “Entendo que o método de julgamento com perspectiva de gênero deve ser aplicado ao caso em exame, em virtude das situações identificadas”. Entre as situações, o magistrado apontou que, pelo teor do boletim de ocorrência registrado naquela ocasião, não houve uma efetiva investigação do caso; os documentos policiais não seguiram a um protocolo com perspectiva de gênero, “dando especial valor ao depoimento de homens, em detrimento do depoimento da mulher”.

O magistrado também destaca as palavras utilizadas pelo trabalhador ao se referir à vítima como “agridente” e “nervosa”. “A utilização dessas palavras revela a visão e a percepção que o reclamante atribuiu à funcionária, como resultado de toda a construção de estereótipos de gênero”, mesmo a funcionária tendo hierarquia superior ao do homem, não teve o seu pedido de conversa atendido, pela percepção e expressão do reclamante de que ela, pela relação estrutural de poder, não tinha poderes para tanto.

Em seu julgamento, o juiz do Trabalho também respondeu ao seguinte questionamento feito pelo funcionário em suas razões finais no processo: “Por que a palavra da engenheira vale mais do que a do Reclamante?”. De acordo com o magistrado, além das informações já mencionadas, o papel de engenheira foi totalmente desconsiderado pelo reclamante. “Não é a fala da engenheira que tem maior peso. É a sociedade patriarcal, profundamente machista, com estereótipos de gênero, que atribui à mulher um papel que não pode ser equiparado ou superior do homem, que a trata sempre como ‘nervosa’, ‘agridenta’, ‘agressiva’, quando pratica atos que, se fossem praticados por homens, seriam vistos como ‘assertivo’, ‘sério’, ‘incisivo’. Embora tarde, é chegada a hora de ver a realidade como ela realmente é, para se atribuir a devida percepção dos fatos que possam conduzir a um julgamento justo”, finaliza o magistrado.

Texto: Lais Azevedo/Secom TRT-8

#PraTodosVerem: A reportagem traz duas fotografias coloridas. A primeira mostra a desembargadora Suzy Koury em sessão plenária no TRT-8. Ela é uma mulher branca, com cabelos curtos e claros. A segunda foto é do juiz do Trabalho Bruno Otávio durante audiência por videochamada. Ele é um homem pardo, de cabelos e barba escuros. As duas imagens possuem um fundo neutro.