Justiça do Trabalho reconhece submissão de trabalhadores a condições análogas à escravidão no sul do Pará

Um dos trabalhadores foi alvejado com vários tiros e sobreviveu após fugir do local.
#ParaTodosVerem: Fotografia em ambiente aberto da fachada da Vara do Trabalho de Redenção
#ParaTodosVerem: Fotografia em ambiente aberto da fachada da Vara do Trabalho de Redenção

A Vara do Trabalho de Redenção proferiu sentença reconhecendo a submissão de cinco trabalhadores a condições análogas à de escravo em propriedades rurais situadas nos municípios de Cumaru do Norte e Santana do Araguaia, no sul do Pará. A decisão decorre de Ação Civil Pública ajuizada pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) contra os empregadores Adelson Neres Alves e Jean Carlos da Silva Alves.

A sentença é resultado de uma operação conjunta realizada em agosto de 2024 por força-tarefa composta pelo MPT, Auditores-Fiscais do Trabalho e Polícia Federal, após denúncia da Clínica de Combate ao Trabalho Escravo da UFPA. No local, foram encontrados trabalhadores sem registro, expostos a jornadas exaustivas, vivendo em alojamentos precários ao lado de chiqueiros, sem acesso à água potável, alimentação adequada ou condições mínimas de saúde e segurança.

Um dos trabalhadores sofreu tentativa de homicídio ao reivindicar seus direitos trabalhistas. Segundo apuração, o empregador efetuou disparos com arma de fogo contra o trabalhador, que conseguiu fugir gravemente ferido. Armas de fogo, inclusive uma pistola e espingardas artesanais, foram apreendidas na fazenda durante a inspeção.

A sentença também reconheceu a ocorrência de vigilância ostensiva, um dos elementos caracterizadores do trabalho escravo contemporâneo. Conforme destacado na decisão, a presença constante do empregador armado, o controle exercido sobre os trabalhadores e o ambiente de intimidação configuram um regime de coação psicológica incompatível com a liberdade de escolha no ambiente laboral. O juiz ressaltou que a vigilância ostensiva deve ser aferida objetivamente, pela presença de instrumentos de intimidação — como o uso de armas —, independentemente da declaração subjetiva de medo dos trabalhadores, especialmente quando colhidas em contexto de possível coação.

O juiz Otávio Bruno da Silva Ferreira concluiu que as provas produzidas nos autos, incluindo autos de infração, declarações de trabalhadores e documentos oficiais, evidenciam a prática de redução a condição análoga à de escravo, nos termos do art. 149 do Código Penal. A sentença enfatiza a “violação grave à dignidade da pessoa humana” e a submissão dos trabalhadores a um regime de “coisificação”, caracterizado pela servidão por dívida, vigilância armada e total precariedade das condições de trabalho.

Dentre as determinações judiciais, destacam-se:

  • Reconhecimento do vínculo empregatício com os trabalhadores identificados;

  • Condenação ao pagamento de verbas rescisórias e indenizações por danos morais individuais e coletivos;

  • Inclusão dos reclamados no Cadastro de Empregadores que tenham submetido trabalhadores a condições análogas à de escravo (Lista Suja);

  • Obrigação de cumprir integralmente a legislação trabalhista e previdenciária, sob pena de multa de R$ 10 mil por trabalhador prejudicado e por obrigação descumprida;

  • Habilitação dos trabalhadores ao seguro-desemprego especial, previsto para vítimas de trabalho escravo.

A decisão ressalta, ainda, o papel essencial da atuação articulada entre os órgãos de fiscalização e da tutela coletiva de direitos fundamentais, especialmente em regiões vulneráveis. O caso também foi fundamentado em tratados internacionais de direitos humanos e nas recomendações da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

A atuação do Judiciário também observou os parâmetros do Protocolo de Atuação para Identificação e Enfrentamento do Trabalho em Condições Análogas à de Escravo, instituído pelo Conselho Superior da Justiça do Trabalho (CSJT). O documento orienta magistrados e servidores a adotarem uma abordagem humanizada e centrada na dignidade da pessoa humana, considerando a complexidade das relações de trabalho exploratórias. No caso concreto, o juízo aplicou os critérios do protocolo para valorar adequadamente as evidências de coação, vigilância armada, servidão por dívida e ausência de condições mínimas de trabalho digno, reconhecendo o contexto de vulnerabilidade extrema a que estavam submetidos os trabalhadores. A sentença destacou que o protocolo contribui para garantir uma atuação mais efetiva da Justiça do Trabalho no combate ao trabalho escravo contemporâneo.

Texto: Juiz Titular da Vara do Trabalho de Redenção, Otávio Bruno da Silva Ferreira