TRT-8 reafirma condenação por trabalho escravo em fazenda de São Félix do Xingu

Durante a Semana Nacional de Combate ao Trabalho Escravo, ocorrida entre os dias 27 e 31 de janeiro, o Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Região (Pará e Amapá) realizou mais uma edição de seu seminário sobre o tema e participou, fora de sua sede, de importantes debates organizados por outras entidades. Mas também houve importante momento de concretização do papel do Judiciário Trabalhista nesta luta, com o julgamento de um processo no qual a parte era acusada de submeter trabalhadores a condições análogas à escravidão e buscava anular os autos de infração lavrados pelos auditores fiscais do Ministério Público do Trabalho (MPT).
O processo foi julgado pela 2ª Turma do TRT-8, dia 29 de janeiro, segundo detalha a relatora, desembargadora Maria de Nazaré Rocha. “Sim, tivemos a oportunidade de julgar um processo que tratava de condições análogas à escravidão. Digo ‘oportunidade’ porque estávamos na Semana de Combate ao Trabalho Escravo, que ainda é uma chaga no país. Infelizmente, essa realidade persiste, e temos o desafio contínuo de combater essas condições degradantes, que, em grande parte, atribuo à tradição escravocrata do Brasil, um dos últimos países a abolir a escravidão”, lembra a magistrada.
No caso analisado, o juízo de 1º grau julgou um processo no qual a parte acusada de submeter trabalhadores a condições análogas à escravidão buscava anular os autos de infração lavrados pelos auditores fiscais do Ministério Público do Trabalho (MPT) e pedia que seu nome fosse retirado da lista de empregadores condenados por trabalho escravo no país. O que não foi acatado pela 2ª Turma do TRT-8, diante da comprovada responsabilidade do acusado.
“Esses auditores realizaram uma grande operação com um Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM), que contou também com a participação do Ministério Público da União (MPU) e da Defensoria Pública da União (DPU), fiscalizando duas fazendas e constatando que trabalhadores estavam submetidos a condições degradantes. Eles não tinham unidades sanitárias para uso próprio, não possuíam alojamento adequado e não tinham onde se abrigar, sendo forçados a esse tipo de trabalho”, comentou a magistrada sobre o caso.
De carne podre a barracos de lona
Em trechos do auto de infração, são detalhadas diversas situações que feriam a dignidade humana dos trabalhadores nas duas fazendas fiscalizadas pelo Ministério Público, claramente configurando condições de trabalho análogas à escravidão. Detalha-se que dos 41 empregados, 16 foram contratados para prestar serviços de construção e, eventualmente, manutenção de cercas. Destes 16 trabalhadores, dois especialmente pernoitavam em um barraco de lona (antigo galinheiro/depósito) localizado aos fundos do alojamento existente no Retiro Futura, e outros dois pernoitavam em um galpão/depósito de madeira existente no entorno da sede da Fazenda Pedra Preta, localizada no município de São Félix do Xingu (PA), e destinada à pecuária, com cerca de 10 mil cabeças de boi.
O barraco de madeira media 4m por 4m; era estruturado sobre pedaços de madeira, com cobertura mista de telha brasilit, lona e palhas. Devido à grande quantidade de furos e falhas de telhas não dava abrigo adequado para as intempéries. O espaço pequeno, além de servir para abrigar os trabalhadores, servia também para a guarda de diversos itens, incluindo combustível. Já no barraco de lona, o piso era de chão de terra batida, medindo 3,5m por 4m. Ficava abaixo do nível da frente e devido ao piso ser de terra, a água das chuvas adentrava no interior do lugar e virava barro, inundando todo o local.
Para os quatro trabalhadores não havia instalações sanitárias disponíveis, obrigando-os a
buscarem outros meios vexatórios. No barraco de lona, embora existisse um banheiro, este não estava ligado à fossa séptica e todos os dejetos que fossem ali depositados eram lançados em um buraco aberto próximo ao barraco, logo só poderia ser utilizado para o banho e para urinar, sendo que as demais necessidades fisiológicas deveriam ser realizadas no mato, assim como para os trabalhadores do barraco de madeira.
Também não havia local adequado para cozimento dos alimentos. Nessa situação foram encontrados, ao todo, 16 trabalhadores. A cozinheira geralmente cozinhava os alimentos do almoço durante a madrugada, para que os trabalhadores pudessem levar às frentes de serviços, e durante o dia cozinhava o jantar. A trabalhadora informou ainda que a carne fornecida ao grupo de trabalhadores ficava depositada em um freezer. Foi solicitado pelo GEFM para que mostrassem a carne. Ao abrir a porta do freezer o odor fétido de carne podre espalhou por todos os cantos e foi possível verificar a presença de mantimentos bons em meio aos podres.
A carne podre mesmo assim iria para a panela e seria servida aos trabalhadores. Os trabalhadores foram unânimes em afirmar que tal fato acontecia toda a semana, pois a carne era levada em quantidade suficiente para a semana toda, mas como o freezer não ficava ligado por várias horas no dia, os alimentos perecíveis acabavam por estragar e a ordem era de que não podiam ser descartados.
Os locais destinados aos trabalhadores fazerem as refeições não possuíam condições mínimas de conforto e higiene, não havia mesas, cadeiras, instalações sanitárias com lavatórios ou depósitos de lixo. Nos locais, havia pequenos bancos de madeira ou bancos improvisados, como galões vazios de agrotóxicos. O empregador também não forneceu a todos os trabalhadores camas ou mesmo redes, que eram de propriedade dos trabalhadores, os quais se viam obrigados a adquiri-los às suas expensas para que pudessem ter condições mínimas de conforto nos momentos de repouso.
Não eram fornecidos armários ou outras estruturas para a guarda dos pertences pessoais de todos os trabalhadores e foi verificado que havia embalagens vazias de agrotóxicos descartadas em um dos alojamentos da sede da fazenda. As instalações elétricas, apresentavam muitas "gambiarras", sujeitando os trabalhadores a riscos de choques elétricos, além do risco de incêndio das edificações. E ainda houve muitas outras irregularidades, incluindo questões trabalhistas como trabalho sem carteira assinada, pagamento sem recibo, jornada de trabalho sem registro de horas e atraso no pagamento de salários.
“Os fatos apurados pela equipe do GEFM contidos não só no nos autos de infração destacados acima, mas também nos demais, não deixam dúvidas quanto às condições degradantes a que eram submetidos os trabalhadores”, apontou a relatora. O que embasou a decisão, por unanimidade, da 2ª Turma do TRT-8 em manter tudo o que foi decidido em primeira instância na Justiça do Trabalho da 8ª Região.
Durante o Seminário do Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo, na sede do TRT-8, a professora Valena Jacob, coordenadora da Clínica de Combate ao Trabalho Escravo (CCTE), da UFPA, já havia elogiado a atuação da Justiça do Trabalho da 8ª Região quando se trata do assunto. “Estamos tendo sentenças magníficas dos juízes de 1ª instância aqui no TRT-8”, apontou. “A Justiça do Trabalho na 8ª Região, tanto no Pará como Amapá, está nos surpreendendo com a qualidade das decisões; são decisões que dão cautelarmente o seguro desemprego, que reconhecem o trabalho escravo, que condenam, estão dando dano moral individual decente. Estas decisões estão sendo subsidiárias pra gente nas nossas atividades de ensino, nos nossos cursos de análise de decisões. Eu parabenizo porque quando a gente vai pro [âmbito da justiça] nacional, isso não é uma praxe. E aí os colegas de outros tribunais já podem usar as decisões [da Justiça do Trabalho da 8ª Região]”, destacou.
Texto: Lais Azevedo/Secom TRT-8